Olá, epifânicos! Bem-vinde à edição #4 da EPIFANIA.
É difícil me desvencilhar de falar de música quando passo 24 horas do meu dia pensando nisso. Desde a última newsletter, estou completamente envolvida com o que o Cassiano escreveu. Embora ele esteja presente em diversas músicas através de samples — como em Eu te Proponho do Racionais, Link Up do Anderson Paak ou Quantas vezes não me achei do DBS —, acredito que ele não tenha o devido lugar no hall consagrado de artistas brasileiros. Por isso, quero dedicar este espaço para falar um pouco desse cantor que me influencia tanto.
Veja bem, eu não entendo nada de música tecnicamente falando, então falo apenas de lugar como fã. Como já disse, este espaço é para compartilhar novas descobertas — algumas delas podem não ser descobertas para mim, mas serão para vocês.
Espero que vocês gostem.
Para quem não faz ideia de quem seja Cassiano, recomendo dar play nessa música antes de continuar a leitura de hoje. É um som de quase 8 minutos, algo quase impossível atualmente com a tiktokização das produções musicais.
Tem um rolê de reggae que colo há uns bons anos, a Jamboree. Nela, um dos DJs, o Jurássico, sempre faz uma pergunta antes de tocar Party Time do The Heptones: Se você estivesse em uma ilha deserta e só pudesse levar uma música, qual seria? Com certeza, a minha escolha seria Onda ou Castiçal do Cassiano. Talvez a primeira ganhe. Nunca vou me cansar. É linda. O barulho do mar e gaivotas ao fundo... Como foi que capturaram aquele som? Qual praia será? Rio de Janeiro?
Mas, voltando ao assunto: quem é Cassiano?
Genival Cassiano dos Santos, ou apenas Cassiano, nasceu em Campina Grande, em 1943. Seu primeiro contato com a música foi através do pai, instrumentista. Nessa época, ele teve a chance de conhecer Jackson do Pandeiro, Mestre Júlio Bandolin e outros nomes da música brasileira. Ainda criança, mudou-se para o Rio de Janeiro com a família. Trabalhou como pedreiro e, à medida que foi crescendo, passou a se interessar pelo violão.
Em 1964, formou, junto com os irmãos, o conjunto Bossa Trio — um grupo que misturava bossa nova, jazz e soul americano, ainda incipiente no Brasil. Com a evolução do grupo e uma série de apresentações ao vivo, criaram Os Diagonais. Apesar da carreira curta, o grupo teve grande influência na música brasileira, com uma mistura original de samba e soul, chamando a atenção de artistas como Tim Maia.1
Voltando dos Estados Unidos, após vivenciar o jazz e o soul americano, Tim Maia descobriu em Cassiano outro fã de Marvin Gaye, Otis Redding e Stevie Wonder. Ao lado de Tim e Hyldon, Cassiano foi fundamental na criação da cena black music carioca no fim dos anos 1960.
Inclusive, é Cassiano quem assina quatro músicas no disco de estreia de Tim, lançado em 1970: Você Fingiu, Padre Cícero (em parceria com Tim), Eu Amo Você e Primavera (Vai Chuva), essas duas últimas escritas com Silvio Rochael.
Com o sucesso de Tim Maia, Cassiano teve a chance de poder lançar seu primeiro álbum solo, Imagem e Som, em 1971. Já comentei sobre esse na última newsletter. Neste álbum, temos a versão de Primavera (Vai Chuva) e duas parcerias com Tim, Tenho Dito e Ela Mandou Esperar.
Nas décadas seguintes, esse disco foi ganhando seu reconhecimento como uma sofisticada mistura de bossa, samba, soul e funk, mas não teve na época do lançamento uma grande repercussão. Faltava, além da conhecida "Primavera (Vai Chuva)", outra faixa com cara de hit radiofônico. Veio então "Apresentamos Nosso Cassiano", em 1973, e a carreira ainda não decolou. Produzido por Pedrinho da Luz, então guitarrista da bem sucedida banda The Fevers, as canções de Cassiano ganharam um verniz pop. Mas há momentos de quase psicodelia e um eco de rock progressivo, em formato muito distante da canção fácil de assobiar.
Tocar no rádio, que era bom, nada.2
A ascensão só veio em 1975, com os singles A Lua e Eu e Coleção, duas baladas soul compostas em parceria com Paulo Zdanowski. Ambas ganharam destaque ao entrarem em trilhas de novelas da Globo: A Lua e Eu em O Grito (1975) e Coleção em Locomotivas (1977).
Essas músicas fizeram parte e ajudaram a consolidar o terceiro álbum Cuban Soul (1976), o disco mais importante de sua carreira. Mas, mesmo com todo o sucesso, Cassiano nunca teve uma relação fácil com as gravadoras. Em 1978, a Discos CBS desistiu de seu quarto álbum, alegando que ele não dava retorno financeiro garantido. Na mesma época, problemas de saúde começaram a afastá-lo. Foi forçado a retirar parte do pulmão e só retornou em 1984, em ritmo mais lento.
Em uma entrevista para o canal Corredor 53, o músico Tinho Martins, que fez backing vocal em um dos seus álbuns, disse que Cassiano era um gênio no estúdio, “meio Stevie Wonder”, mas que, ao vivo, a busca pela perfeição fazia com que ele não entregasse um bom show — e, consequentemente, não vendia.
Seu último álbum, Cedo ou Tarde (1991), não teve a direção musical que Cassiano desejava. Insatisfeito, ele decidiu nunca mais gravar. Permaneceu recluso ao longo de 30 anos em um apartamento na zona sul do Rio de Janeiro, até sua morte, em 2021, aos 77 anos, por complicações pulmonares.
Mesmo longe dos holofotes, Cassiano nunca parou de compor. O Brasil, no entanto, parece não ter sido merecedor de suas músicas, já que o relegou ao ostracismo por 30 anos. A compilação Coleção, organizada por Ed Motta em 2000, resgatou algumas de suas joias, mas não foi suficiente para devolver a ele o lugar que merecia.4
Cassiano sempre enfrentou problemas com executivos de gravadoras porque a indústria fonográfica brasileira pressionava artistas negros de funk e soul a embranquecer um estilo de música que é, em sua essência, negra, para se encaixar no padrão imposto pelas rádios.
Já comentei outras vezes, mas a Bossa Nova passou pelo mesmo processo. Quando olhamos para a raiz disso, é possível perceber que, na verdade, se trata de uma extensão de um projeto político muito bem arquitetado de embranquecimento da cultura brasileira. Um projeto antigo, que remonta à formação do país, mas que acredito ter ganhado feições mais concretas na virada do século XIX para o XX, durante a Primeira República. Esse projeto, iniciado lá atrás, é o que vemos materializado até hoje.
Voltarei a esse assunto em outro momento, mas foi isso que afetou Cassiano e ainda afeta muitos outros artistas. Cassiano pagou um preço alto pela rebeldia e por nunca aceitar o jogo dessa indústria. Teve sua voz calada décadas antes de ela efetivamente silenciar no leito de um hospital público carioca.
Essa daqui é só para os partners in crime. “E se moiar? E se o júri ter provas contra nois?”. Eu sou completamente maluca no sample de Liquid Love do Roy Ayres nessa música. Dias atrás, li a matéria da Monkey Buzz sobre o Cores & Valores em comemoração aos 10 anos do álbum. Já vinha de umas semanas viciada em Racionais MCs, e embora eu goste muito do C&V, era o único que não havia escutado recentemente.
Meu processo de imersão em música é simples: escolho um/a artista e escuto apenas ele/a por semanas a fio. Às vezes, um álbum inteiro. Outras, uma ou duas músicas. O escolhido da vez foi esse.
Gosto muito do contraste entre o Nada como um Dia após o Outro Dia e Cores & Valores. Para mim, mostra muito a versatilidade dos Racionais de ir absorvendo elementos sonoros novos, já que o C&V “é o único disco do grupo que não é voltado para o sample como principal matéria-prima, implicando diretamente na sonoridade final do projeto”5 mas, no finalzinho dessa, tem um breve retorno as origens, porque aparece um pequeno trecho de Castiçal do Cassiano, sempre vivo pelo Brown, até porque, é sempre aquela máxima: ouvindo Cassiano, os gambé num guenta.
[Para acompanhar]
“PRECISAMOS FALAR DE CASSIANO” - perfil dedicado ao documentário que está sendo produzido sobre o Cassiano. Ainda não foi lançado, mas em breve estará nas ruas.
[Para visitar]
RACIONAIS MC’S: O QUINTO ELEMENTO - exposição que celebra os 35 anos de carreira do grupo de rap formada por Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue. Em cartaz até 31 de Maio, no Museu das Favelas.
Matéria “Cassiano, que completaria 80 anos esta semana, ainda mantém mistérios”, escrita por Chris Fuscaldo. Fonte: UBC.
Matéria “Morre Cassiano, aos 77 anos, sem quem a música soul brasileira não seria igual”, escrita por Thales de Menezes. Fonte: Folha de São Paulo.
Matéria “Morte de Cassiano, gênio indomado do soul brasileiro, cala voz já silenciada há décadas pelo país”, escrita por Mauro Ferreira. Fonte: G1.
Entrevista “Baile em baile, degrau após degrau: 10 anos de “Cores & Valores”, escrito por Thais Regina. Fonte: Monkeybuzz