Olá, epifânicos! Bem-vinde à edição #3 da EPIFANIA.
Embora pareça clichê dizer "eu gosto muito de música", faço questão de enfatizar essa característica em mim, porque talvez seja uma das minhas preferidas. Desde que me entendo por gente, sempre fui muito curiosa, e descobrir músicas novas faz parte da minha busca constante por novidades. À medida que fui crescendo, especialmente por causa do meu envolvimento com o grafite, comecei a frequentar festas onde as músicas eram tocadas em vinil.
A primeira vez foi aos 15 anos, e desde então, meu repertório, minha forma de consumir e pesquisar música foram lapidados pela cultura do vinil. Sabe quando você assiste a MasterChef e os cozinheiros identificam os ingredientes do prato só pelo paladar? É assim que me sinto em relação à música, porque percebo que meu sentido mais aguçado é a escuta.
Espero que gostem!
Há algumas semanas, fui impactada por um post de uma plataforma de conteúdo questionando DJs sobre por que é importante manter a cultura do vinil viva. Desde que estou nesse rolê, escuto e reproduzo a frase “disco é cultura”, mas só recentemente percebi que nunca parei para refletir profundamente sobre ela.
Afinal, disco é cultura?
Primeiro, fui entender da onde vem essa expressão. O resultado é que ela advém da Lei "Disco é Cultura", instituída em 2 de dezembro de 1969 para expandir o mercado brasileiro de discos durante a década de 1970. Vale lembrar que este foi um período do regime militar, e a lei foi consequência de uma política econômica de forte estímulo ao consumo promovida pelo governo.
Basicamente, a Lei "Disco é Cultura" autorizava as empresas produtoras de discos fonográficos a abater, do montante do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM), o valor dos direitos autorais artísticos e conexos pagos a autores e artistas brasileiros.1
A busca por investimentos estrangeiros era um aspecto central do modelo econômico da ditadura. A expectativa era que a “maior eficiência” das empresas multinacionais promovesse um crescimento rápido. Essa política favoreceu a expansão das gravadoras estrangeiras, que tiveram seus interesses e demandas acolhidos pelo governo.2
Embora a lei tenha sido instituída na década de 1970, o processo de modernização da indústria fonográfica começou pelo menos 15 anos antes, impulsionado pela chegada de Juscelino Kubitschek à presidência, em 1956, com o lema "cinquenta anos em cinco". Entre 1956 e 1961, muitas transformações ocorreram.3
Produzir e escutar música exigia bastante tecnologia. Assim que tomou posse, JK anunciou o Plano de Metas, um programa de modernização que buscava promover mudanças estruturais na capacidade produtiva do país, estimulando a indústria de bens de consumo duráveis. Esse setor era visto como o futuro. As famílias brasileiras de classe média passaram a ter acesso a eletrodomésticos modernos, algo raro até então. Não apenas fogões com visor panorâmico, máquinas de lavar roupa e enceradeiras com três escovas, mas também rádios de pilha, televisores com controle remoto de fio e aparelhos de som estereofônicos. 4
JK implantou um projeto para superar a herança de miséria e desigualdade por meio do "desenvolvimentismo". Entendia-se o Brasil uma sociedade de contrastes: de um lado, uma parte atrasada, agrária e culturalmente popular, com raízes negras e marginalizadas; de outro, uma sociedade moderna, vanguardista e urbana. O futuro do país estava no desenvolvimento dessa última, por meio da industrialização, urbanização e do estímulo de uma cultura branca.5
A busca pela superação do subdesenvolvimento influenciou intelectuais e artistas da época, que se viam como participantes das transformações em curso. Esse espírito desenvolvimentista chegou à música em 1958, com o lançamento de Chega de Saudade, disco de 78 rpm de João Gilberto que inaugurou a Bossa Nova.


A estética limpa e otimista da Bossa Nova estava em sintonia com o clima de progresso promovido pelo governo JK, cujo maior símbolo era a construção de Brasília, a "capital do futuro".6
Aqui, mais uma vez, retomo reflexões sobre a Bossa Nova, que trouxe na minha primeira newsletter (se você ainda não leu, que tal aproveitar pra ler também?) que é justamente o motivo dela ser escolhida como o gênero que representaria o Brasil oficial e internacionalmente, porque era tido como gênero que ecoa intencionalmente uma estética vista como sofisticada e essencialmente, branca.
PS: Não que eu seja uma contrária a Bossa Nova; até gosto de muitos artistas, mas como historiadora e uma vivant do seu tempo, gosto sempre de entender, tanto no passado quanto no presente, os processos que a cultura sofre.
Este foi o início da indústria de vinil no Brasil, mas não foi tão duradoura. Em 1982, temos o lançamento do Compact Disc (CD) e com ele, se inicia o processo de definhamento da produção e venda dos LPs, até que no final dos anos 1990, não se produziam mais LPs no país, todas as fábricas de vinis fecharam suas portas e a nova mídia passou a monopolizar o mercado fonográfico brasileiro.7
Depois disso, todo mundo já sabe, certo? Evolução tecnológica até a chegada dos serviços de streaming. E embora tudo isso tenha acontecido, quando a gente olha pro hoje, a indústria do vinil retomou seu lugar de destaque no mercado. Hoje estão em pleno funcionamento cerca de 65 fábricas de vinis no mundo e duas no Brasil, a Polyson no Rio de Janeiro e a Vinil Brasil em São Paulo.8 Vários artistas da contemporaneidade escolhem lançar seus trabalhos também em vinil. Porque? O que isso significa?


Com os meios digitais, o consumo de música se tornou um pouco efêmero, e a relação com artistas e produções ficou fragmentada. Músicas cada vez mais curtas, pensadas para viralizar; a facilidade de encontrar artistas e músicas novas via algoritmos; e a falta de concentração e fruição tornam a experiência musical um pouco limitada.
Quando penso que “disco é cultura”, percebo que o vinil materializa e intensifica a experiência sensorial com a música: o contato físico e visual com o disco, a capa, o encarte, o cheiro. Escutar o lado A e o lado B. Voltar a agulha pra escutar a música de novo. Garimpar e o descobrir artistas novos, comprar um disco porque achou bonito ou pelos músicos listados no encarte, sem saber se vai gostar até ouvi-los quando chegar em casa. Se cria uma relação única entre sujeito-álbum-artista.
Além disso, o rolê de vinil oferece uma experiência de descoberta. Do desconhecido. Você nunca sabe o que esperar do set. Para descobrir a música, por favor, não use shazam; pergunte a/ao DJ. Provavelmente, a pessoa que está no toca-discos vai te mostrar o disco. Para quem tem ouvidos atentos, como eu, é também um momento de pesquisa musical. Posso dizer que 80% do meu gosto musical vem dos lugares e DJs que ouvi ao longo dos anos.
Claro, falo tudo isso aquele saudosismo barato daquela pessoa que só valoriza o que vem do vinil. Tem muita gente produzindo em outras ferramentas, a tecnologia evoluiu e a forma de se pesquisar música também. Mas, a relação que se estabelece com o vinil só existe nesse universo.
Por isso, retomando meu questionamento inicial: acredito que disco é cultura porque manter a cultura do vinil é uma forma de preservar a base e a essência de tudo. Apesar da tecnologia, o vinil é a única forma de materializar a música em algo palpável, transformando o consumo em uma experiência imersiva e significativa, que foge da efemeridade dos dias de hoje. Acho que cultura do vinil remonta um pedacinho do passado no presente.
Há duas semanas, fui no show da Cristal (vale conhecer) e descobri que uma das músicas do álbum é inspirada no “Imagem e Som” do Cassiano, lançado em 1971. É o primeiro álbum dele e eu nunca tinha escutado (sim, uma vergonha). A primeira música que escutei foi Uma Lágrima e com ela, ativei meu modo obsessão, porque precisava descobrir onde já tinha escutado. Eu tenho um ótimo ouvido e me recuso a usar o Who Sampled, pensei. A saga começou. Passei metade do meu percurso pro trampo no repeat tentando descobrir. Quem tava atrás de mim no busão olhando a tela do meu celular não deve ter entendido nada. Até que a epifania veio: veio da Sou + Você, que abre o “Nada Como um Dia Após o Outro Dia”, do Racionais. Lindo. Tudo o que vem com o Racionais é um prato cheio de referências. Ainda mais com o Cassiano. Talvez a próxima newsletter seja sobre ele…
[Para conhecer]
Lugares com rolê de vinil em SP:
Boteco Prato do Dia | Bar do Prato | Domo Bar | Fatiados Discos | Subido 609
Casa Sements | Sala Bar | Kaia SP | Casa de Francisca | Matiz Bar
[Para acompanhar]
Djs que tocam no vinil:
Carol Selecta | Janaína Nas | Erika Morais | Cremosa Vinil | Dani Castor
[Para assistir]
Canais para assistir sets com vinil:
Na Manteiga Radio | My Analogic Journal
OLIVEIRA, Claudio Jorge Pacheco de. Disco é Cultura: a expansão do mercado fonográfico brasileiro nos anos 1970. 2018. p. 11. Link: www.ccj.ufpb.br/esael/contents/pdf/tcc-disco-e-cultura_claudio-oliveira.pdf
Idem. p.12
Idem. p.18
SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 415-416.
Idem. p. 415
NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, Edição do Kindle
Idem.
Demais, Disco é muito cultura!! Gostei
😍😍😍