Olá, epifânicos! Bem-vinde à edição #1 da EPIFANIA.
Eu sempre digo que sou uma pessoa de movimento. Gosto de experimentar, visitar lugares, conhecer gente, descobrir e aprender assuntos novos. Gosto de tanta coisa que é difícil fazer caber em um lugar só.
Na tentativa de caber, resolvi criar este projeto, no qual compartilho um pouco das minhas descobertas e vivências (recentes ou antigas). Não sei se vai ter uma lógica, mas posso afirmar uma coisa: você pode ler esta news como se estivesse lendo aquelas páginas de “fatos aleatórios” e, então, ter aquela sensação de descoberta de algo novo. Essa é a minha intenção.
Falei bonito, falei bastante, mas se fosse pra resumir em um tweet, como a galera do meu trampo sempre me pede, eu diria: é uma news para curiosos.
Vamos nessa? Boa leitura.
Espero que você goste <3
⏱️ Tempo de leitura: o mesmo que essa música. dá o play antes!
Há uns bons anos, tenho um grande vício em produções asiáticas, em especial do Japão, Coreia do Sul e China. Mas desde que comecei a me aprofundar um pouco mais na pesquisa musical japonesa, tenho percebido bastante similaridades musicais com o Brasil e por isso, pensei na hipótese:
Seria o Japão o primo distante do Brasil? Como um lugar tão distante territorialmente poderia ter influências sonoras tão diretas, parecidas com o samba jazz, por exemplo?
O que me instigou a pensar nisso foi quando, em um dos shows, Marcos Valle comentou de uma música feita depois de se perder pelo metrô de Tokyo - Lost in Tokyo Subway - e como ela e outras têm elementos similares com músicas de vários grupos e artistas japoneses, como por exemplo, o álbum Talio da banda japonesa Ryusenkei.
Embora eu tenha tido dificuldade de achar produções científicas sobre esse tema, através do texto "Música brasileira no Japão: Novos Compositores para um público atento"1 da Dani Gurgel, eu descobri alguns fatos inusitados que podem nos dar algumas pistas dessa possível influência brasileira.
Um exemplo é a existência de lojas de discos especializadas em música brasileira, como a Taiyo Record (foto 1). Além disso, uma revista chamada Latina (foto 2) e livros, como o Guia da música instrumental brasileira (foto 3) do jornalista japonês Willie Whopper, que conta com pequenas resenhas sobre as relações entre discos e músicas. Inclusive, o pesquisador viaja constantemente ao Brasil em sua investigação e tem até um barzinho em Tokyo chamado ‘Aparecida’.



Segundo Dani Gurgel, apesar de existir uma classificação da música brasileira como world music, a relação do país feita com o Jazz é bastante considerável, já que grande parte da cultura do século XX é importada dos Estados Unidos, principalmente desde a reconstrução após a Segunda Guerra Mundial. 2
Nos Estados Unidos, até hoje, bossa nova é vista como subgênero do jazz e qualquer música feita no Brasil que se aproxima minimamente da bossa nova tem grandes chances de ser etiquetada como um braço do jazz.
Essa percepção da bossa nova como um tipo de jazz abre caminho para que músicos brasileiros (como o próprio Marcos Valle, que sempre faz shows no Japão) tenham acesso facilitado a toda uma cultura existente conectada ao gênero.
"Quando viajo, reparo que, no Japão, ouço músicas brasileiras muito mais do que em outros países. Aqui, a música brasileira passa como BGM no shopping, no café, no restaurante, no hospital... em todos os lugares. Até a década de 2000, a maior parte dessa música era bossa nova, mas agora comporta música popular brasileira (MPB) também. Então as pessoas a escutam sem saber que é música brasileira, já estão acostumadas com BGM (BGM significa background music; no português, música ambiente)"3
Agora, ao retomar minha pergunta inicial, percebo que não existe uma resposta definitiva para ela; ainda assim, é interessante observar como a presença da música brasileira se ramificou pelo país. Embora a influência portuguesa tenha ocorrido em um momento bem distante na história do Japão, é possível perceber como essas influências são incorporadas e ressignificadas na sociedade, produzindo uma cultura singular que absorve elementos brasileiros, mas também cria sua própria identidade.
Por isso, ao fazer a analogia do Japão como um primo musical distante do Brasil, percebo como um primo de segundo grau: faz parte da família, possui relações em comum, mas está distante, tem suas próprias diferenças e uma individualidade própria.
Acho que o suprassumo dessa influência é o BRASILIAN SKIES, álbum do guitarrista japonês Masayoshi Takanaka lançado em 1978.
Para gravar o álbum, Masayoshi veio para o Brasil, gravou parte dele nos estúdios da PolyGram, na Barra da Tijuca e, embora não exista nenhum registro sobre o assunto nos principais jornais, as fotos do disco falam por si só.
E mais interessante é que ele contou com time de peso: na contracapa do disco, mostra Masayoshi cercado por vários músicos brasileiros que participaram do disco e inclui o trio de ouro dos ritmistas nacionais (Eliseu, Luna e o famoso Mestre Marçal), Sérgio Barroso (baixo) e até o grande Wilson das Neves na bateria.4




Um texto publicado no blog Maior Que O Peloponeso me fez ter algumas reflexões pertinentes sobre esse álbum.
Quando pensamos em 1978, o que estava rolando no Brasil? Ditadura militar. Nessa época, a música brasileira conhecida no exterior era a bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto, gênero que ecoa intencionalmente uma estética vista como sofisticada, muito mais focada no aspecto estético e sensorial, até mesmo bastante melancólica, do que em qualquer compromisso de retratação fiel ou denúncia da realidade do país.
Foi esse o estilo pensado para vender a imagem do Brasil para o exterior, enquanto o gênero que de fato faria jus à realidade do país era o samba. Porém, como esse tinha cor e não era a branca, foi deliberadamente apropriado e transformado em algo considerado “mais aceitável”. Em uma entrevista concedida ao UOL, o babalorixá e antropólogo Rodney William afirma:
“A bossa nova foi deliberadamente um processo de apropriação cultural, ainda que esse conceito não estivesse estruturado à época. Há uma declaração do Tom Jobim que reproduzo no livro: ele afirma: ‘o samba negro do Brasil é muito primitivo. Você pode chamar a bossa nova de um samba limpo, lavado’. A bossa nova apagou a cor do samba; ela quis tirar esses elementos que faziam dele música de resistência negra e apresentou para o mundo essa brasilidade depurada, branca, palpável. Fez com que os cantores brancos da elite da zona sul ganhassem ainda mais dinheiro, enquanto o samba, sobretudo os compositores e cantores, ficou relegado à miséria.”5
Mas, para mim, o que traz grandeza para o álbum BRASILIAN SKIES é que o guitarrista japonês decide exportar para fora algo diferente da bossa nova: já na primeira faixa, temos o som da cuíca e o apito carnavalesco acompanhando a música toda. A influência de Masayoshi é afro-brasileira; é o samba.
[Para fazer]
Na quinta-feira (14/11), a partir das 18h, vai rolar uma comemoração de aniversário da minha amiga e MC Tamiyou no CR1A 011 (Centro de SP) e estarei como DJ ao lado de LARA, Sodomita e a própria aniversariante. Vamos? Entrada gratuita. Rua São Domingos, 251 (10 minutos do metrô Anhangabaú).
[Para ouvir]
Jovem Blues, banda japonesa que mistura neosoul dos anos 90/2000, Jazz, Hip-Hop e outras vertentes. Minha música favorita é a Fuwa Fuwa e estou viciada há dias nessa live session deles. Bom demais!
[Para seguir]
Yokogao magazine é uma revista japonesa focada em revelar gaps escondidos da cultura japonesa para além da tradicional.
[Para assistir]
Documentário Veraneio: Uma Antologia Negra retrata a família Pereira e suas três gerações de DJs, que começou com o Seu Osvaldo, o primeiro DJ do Brasil. A exibição vai acontecer na Vila Itororó, no dia 07/11 (quinta-feira) a partir das 20h.
GURGEL, Dani. Música brasileira no Japão: Novos Compositores para um público atento. Novos Olhares, v. 7, n. 2, p. 112-122, 2018. Link: https://www.revistas.usp.br/novosolhares/article/view/131501
GURGEL, Dani. op cit., p. 115
Trecho de entrevista com Takashi Horiuchi retirado do texto "Música brasileira no Japão: Novos Compositores em colaborações" de Dani Gurgel, p. 115.
Essa informação eu tirei do texto do Ricardo Schott.
Parabéns pelo conteúdo!! Muito massa conhecer um pouco dessa relação, entender as conexões e poder ouvir coisas novas por aqui. Literalmente um primo de segundo grau hahaha
tudooooo